É sem dúvida um mal-estar cheio de defeitos; mas é ainda um mal muito maior estar cheio e não os querer reconhecer, visto que é acrescentar-lhe ainda o de uma ilusão voluntária. Não queremos que os outros nos enganem; não achamos justo que queiram ser mais estimados por nós do que o que merecem: não é portanto justo também que os enganemos e queiramos que nos estimem mais do que merecemos. Assim, quando só descobrem imperfeições e vícios que nós com efeito temos, é visível que não nos prejudicam, visto que não são eles a causa dessas imperfeições, e que nos fazem um benefício, por nos ajudarem a libertar-nos de um mal, que é a ignorância das imperfeições. Não nos devemos zangar porque as conheçam, e porque nos menosprezem: sendo justo que nos conheçam pelo que somos, e que nos desprezem se somos desprezíveis. Eis os sentimentos que nasceriam de um coração cheio de rectidão e de justiça. Que devemos portanto dizer do nosso, quando nele encontrarmos uma disposição completamente contrária? Pois não será verdade que odiamos a verdade e aqueles que no-la dizem, e que gostamos que se enganem com vantagem para nós e que queremos ser estimados por eles por sermos diferentes daquilo que com efeito somos? (...) A vida humana é apenas uma ilusão perpétua; o que fazemos é enganar-nos e iludir-nos mutuamente. Ninguém fala de nós na nossa presença como na nossa ausência. A união que existe entre os homens é fundada sobre este mútuo embuste; e poucas amizades subsistiriam se cada um soubesse o que o seu amigo diz dele quando não está presente, ainda que ele fale então sinceramente e sem paixão. O homem é apenas disfarce, engano e hipocrisia em si mesmo e para com os outros. Não quer que lhe digam a verdade e evita dizê-la aos outros; e todas estas disposições tão afastadas da justiça e da razão têm uma raiz natural no seu coração.
Blaise Pascal, in "Pensamentos"
Sem comentários:
Enviar um comentário